a culpa não foi minha .~*


Me perguntei até quando aquilo iria durar. Chegou um momento em que eu não tentei mais me esquivar, não resisti mais, simplesmente aceitei o que estava acontecendo. Só queria que acabasse logo. Queria acordar daquele pesadelo. Mas não acabava. Quando eu pensei por um instante que tudo aquilo havia chegado ao fim, veio o outro. E depois o outro. Mais um. E, por último, o pior de todos, que jamais me deixaria esquecer tudo pelo qual havia acabado de passar naquele quarto, meu ex-namorado.

- Vamos, Clara, só hoje! Eu nunca te pedi nada! Vamos, por favor!! - Insistia minha prima. E por mais que eu dissesse não, que eu dissesse que precisava estudar para a prova de história que seria no dia seguinte, ela continuava insistindo. E eu cedi. Não devia, não podia, mas concordei em ir àquela festa, mesmo não estando animada e pensando somente na recuperação em história do final do ano.

Percebi que tínhamos chegado quando ouvi a música alta e vi vários carros estacionados. Nos despedimos do Flávio, irmão da minha prima, e descemos do carro. - Pego vocês à meia noite em ponto! Nem um minuto depois, certo, meninas? - Disse ele, e eu nem respondi, estava prestando atenção às pessoas que estavam do lado de fora da casa, algumas conversando, outras bebendo. Vários casais se beijando e se abraçando de forma tão íntima, que cheguei a ficar com vergonha alheia.

Pensei em desistir logo ao chegar, queria voltar pra casa, pro meu quarto, mas quando olhei para o lado, minha prima Stephanie não estava mais ali. Olhei em volta e percebi que ela já entrava na casa, abraçada a um rapaz que eu não consegui reconhecer porque estava de costas.

Corri ao encontro dela e, antes que conseguisse alcançá-la, fui interceptada por ninguém menos que Robson, me ex-namorado. - Ora, ora, quem eu encontro por aqui! - disse ele e naquele instante me arrependi completamente de ter cedido aos pedidos insistentes da minha prima. Todas as memórias, que somente depois de anos de terapia eu havia conseguido bloquear da minha mente, voltaram naquele instante. As discussões por motivos fúteis, a forma violenta como ele sempre me tratou. E, pior, as ameaças que sofri quando decidi terminar nosso relacionamento. Foi a pior fase da minha vida. Pelo menos eu pensei que seria a pior fase. Até aquele dia. Eu não devia estar ali, definitivamente.

Tentei me esquivar, mas não consegui, ele já estava me segurando pelo pulso. Olhei em seus olhos e pude perceber claramente que ele já estava ali há muito tempo. E, como de costume, aparentemente drogado. Senti o medo correndo pelas minhas veias. O pavor de não saber do que ele seria capaz. Ou pior, de saber claramente do que ele era capaz. Pedi para que ele me soltasse, mas sabia que era inútil, então, para evitar uma confusão maior, disse que só estava ali para procurar a Stephanie, porque não poderíamos ficar. E ele, muito educadamente, disse que me levaria até ela, que ela estava com seu irmão na sala, no andar de cima.

Subi as escadas imaginando que ele tentaria me agarrar ali, olhei para os lados, procurando algum lugar para onde pudesse correr e me esconder quando conseguisse me soltar dele, para que, então, pudesse pedir ajuda. Pura ilusão. Logo que subimos, percebi que não havia sala nenhuma, somente um corredor, que dava acesso a vários quartos. E ele me arrastou para um deles. 

Não importava o quanto eu gritasse, gritei e gritei muito, tentei não entrar naquele quarto porque ali saberia que não teria chances contra alguém com quase o dobro do meu tamanho, mas ninguém me ouviu. Pelo menos ninguém apareceu para me ajudar. E como percebi que não iria conseguir fugir, antes mesmo de atravessar a porta, comecei a chorar.

Demorei a perceber o que estava acontecendo ali. Estava de costas quando entrei no quarto, ainda tentando lutar para me desvencilhar daquele que um dia havia frequentado minha casa e conhecido meus pais. Que um dia havia sido amigo do meu irmão. Alguém em quem um dia eu havia confiado.

Então ele fechou a porta. E eu me virei e pude ver com clareza. Stephanie estava deitada na cama, Amordaçada. A reconheci pela sua tatuagem no tornozelo, uma Flor de Liz, que fizemos no mesmo dia, ano passado. Não conseguia ver seu rosto, porque eles não deixavam, estavam sobre ela. Dois rapazes que eu saberia depois que se chamavam João e Fernando. Outros dois rapazes, que não sei dizer o nome, estavam deitados na cama, segurando os braços da minha prima e dizendo, de forma repugnante, que seria mais fácil se ela cooperasse, enquanto os rapazes se revezavam na sessão de tortura.

Trouxe mais um presentinho pra vocês, pessoal! – Disse o Robson, e só aí foi que eu me toquei de que seria a próxima. Tentei inutilmente me debater para tentar sair dali, mas todo o esforço foi em vão. Os rapazes que seguravam a Stephanie a soltaram, porque ela já não tinha forças para lutar, e vieram até mim.

Chorei, gritei, me debati o máximo que pude. Pedi a Deus. Não adiantou. Stephanie já estava deitada sobre um canto do quarto e eu não ouvia mais seus gritos, somente seu choro agonizante. Os gritos de pavor, de dor e sofrimento que ouvia agora eram os meus. Pensei na minha vida, nos meus pais. Pensei na prova de história que eu não faria. Pensei em quando eu conheci o Robson, em como da noite para o dia ele se transformou em um estranho. Mas o que mais pensei foi em morrer. Queria morrer. Queria que tudo acabasse ali. Não queria mais nada na vida. Que vida? Existe vida após isso tudo que está acontecendo? Desmaiei. Ou pelo menos eu acho que foi isso o que aconteceu, porque eu já não me sentia ali. Ainda podia ver o João, Fernando. Os outros dois, talvez Lucas, talvez Otávio. Um a um, se revezando num abuso sem fim. E então o Robson. Com aquele sorriso sarcástico de quem ganha um Oscar de melhor ator já sabendo do resultado meses antes. Podia ver todos eles, mas não ouvia suas vozes. Tentei olhar para a Stephanie, mas não conseguia enxergá-la. Lembro que fechei os olhos e fiquei assim por um longo tempo. Então ouvi risadas e a porta se fechou num estrondo, me acordando daquele torpor.

Um lixo. Um nada. Algo sem o menor valor. Era assim que eu passaria a me sentir durante anos e anos. Psicólogos, psiquiatras, medicações, altas dosagens. E ainda me olho no espelho e busco o sentido da vida. Busco dentro de mim uma razão, um motivo apenas, para me fazer seguir em frente. Para ter vontade de viver outra vez.

O fato que muita gente não sabe, gente do tipo que comenta em postagens no facebook que a culpa é da vítima, é que eu não tive culpa de perder minha dignidade ai naquele dia. Eu não estava de roupa curta. Eu não estava rezando, mas se estivesse, poderia ter sido abusada pelo padre ou pelo pastor, como ocorre com muitas crianças. CRIANÇAS!!! Elas pediram? Não, eu não tenho culpa por ter confiado em alguém, por ter ido a uma festa. Não existe motivação para o estupro a não ser a existência do abusador. E eles estão por toda parte. Brancos, pretos, amarelos, vermelhos. Pobres, ricos, classe média. No trabalho, na escola, na rua, DENTRO DE CASA!

Não, eu não tenho culpa de ter perdido minha vida aos 16 anos de idade, porque um fato que muita gente não sabe, gente que culpabiliza a vítima, é que naquele dia foi comigo. Amanhã, e Deus queira que isso jamais aconteça, pode ser com você, com sua mãe, sua irmã, sua filha. Não me julgue! Se não pode de alguma forma me ajudar, não tente ainda mais me deixar para baixo. Até porque, eu sei bem o que é estar no fundo do poço. Peço, por favor, se não for pedir muito, que me ajude para que um dia eu consiga sair dele!


Esse post surgiu depois de eu ver, mais uma vez, uma reportagem sobre duas adolescentes de 15 anos que sofreram estupro coletivo durante três dias. O crime, desta vez, aconteceu em Paulínia (SP). Mas a cada dia mais e mais mulheres e crianças sofrem os mais diversos tipos de abuso. E, infelizmente, com essa cultura machista nojenta que acredita, em pleno século XXI, que, na maioria das vezes, a mulher é a culpada pelo estupro que sofre, a tendência é só piorar. Tenho medo de viver num país como este, nesta terra de ninguém onde a impunidade impera. O respeito, a moral e os princípios estão sendo deixados de lado, trocados por Iphones e roupas de marca. Eduquem seus filhos, eu imploro, POR FAVOR, EDUQUEM OS SEUS FILHOS! O mundo já tem pessoas ruins o bastante. Vamos mudar as estatísticas! A mudança deve começar em casa! Eduquem seus filhos e os tornem em grandes homens. Nós mulheres pedimos. O mundo implora por isso!

4 comentários

  1. Oie
    Muito boa a reflexão, é preciso pensar sobre. Parabéns pela iniciativa.

    Beijinhos
    http://diariodeincentivoaleitura.blogspot.com.br/

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  2. Uma boa reflexão para mostrar como tudo pode mudar, a partir da educação, da forma de encarar as coisas.
    Adorei.

    http://www.revelandosentimentos.com.br

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  3. Nossa, eu li atentamente cada palavra do seu post, super real, super crueldade e super realidade. Muitas garotas passam por isso, caladas, sem ajuda e se sentem sem dignidade. Sua iniciativa é maravilhosa, isso já é uma ajuda!! Parabéns, de verdade. Um beijo.
    Esteticando-se

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  4. Oi kelly.
    Ficou lindo o visual novo do blog, eu amei.
    bjs

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