fez as malas. embalou tudo com muito cuidado para que seus pertences se mantivessem intactos durante a viagem que faria. não queria encontrar nada danificado ao chegar. era o início de uma nova jornada. apesar de querer tudo novo, começar do zero, certas coisas a gente deve sempre levar junto, isso ela sabia.
há tempos se escondia. viveu por muitos anos dentro de sua própria bolha, uma redoma construída por ela mesma para evitar passar por tudo de novo. preferiu se excluir do mundo. ainda tinha amigos, mas bloqueou completamente seu lado emocional. involuntariamente, deixou de viver intensamente. não mais expressava o que sentia realmente, acreditava ser melhor assim.
desde que tudo aconteceu, passou a ser uma pessoa triste. sorria, mas não com os olhos. participava pouco de sua própria vida, era nada mais que figurante das suas próprias cenas sem roteiro. mas aparentava estar feliz. atuava muito bem.
tudo empacotado. ela olha em volta. aqueles cômodos vazios voltam a lhe dar medo. será que estava tomando a decisão certa? será que não iria se frustrar de novo? e se não acontecesse como ela esperava? talvez devesse desfazer as malas e voltar para o seu canto, se esconder novamente.
respirou fundo, fechou os olhos e as lembranças boas de algo bem recente expulsaram o pensamento negativo, e sua mente divagou por espaços nunca antes explorados por ela, até aquele primeiro dia.
o perfume. a memória olfativa realmente é a que permanece mais forte. parecia que ela estava lá novamente, no seu abraço, sentindo-se acolhida e totalmente protegida. "o melhor lugar do mundo nunca foi um lugar". sábio Pedro Gabriel*. em nenhum outro lugar, ela sabia, se sentiria tão em casa. era como se não existisse nada além dos dois. não existia dor, não existiam lembranças ruins.
tudo aconteceu tão rápido, o carinho, o olhar. um chiclete sabor melancia e o melhor de todos os beijos. estava feito.
o barulho do carro a despertou daquele breve devaneio. parecia mesmo um sonho. seu coração estava disparado, a ansiedade era tamanha que suas mãos tremiam. estava prestes a mudar completamente. dali em diante seria uma nova mulher, se transformaria. olhou novamente em volta, o espaço vazio, as malas em um canto, caixas de papelão num outro. correu até o banheiro e se olhou mais uma vez no espelho, dando um leve retoque no gloss. sorriu diante da imagem refletida. estava radiante!
ouviu o som da campainha. correu até a porta e a abriu. seu rosto se iluminou instantaneamente ao vê-lo novamente. pegou sua bolsa. conferiu a carteira, gloss, celular, tudo certo. olhou mais uma vez para tudo que conseguiu reunir durante seus 26 anos. as malas e caixas que mal se fechavam. lembranças, ressentimentos, frustrações, tudo empacotado e devidamente etiquetado. trancou a porta e, sem pensar duas vezes jogou a chave o mais longe que pode. ali ela não voltava mais!
de mãos dadas, saíram. ela tinha um novo lar agora. há coisas nessa vida que a gente sempre deve levar junto. ela levou o sorriso. intenso e verdadeiro dessa vez. mudou-se de endereço para sempre.
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* um beijo para o Pedro Gabriel que define minha vida várias vezes em seus guardanapos.